sábado, 12 de setembro de 2009

Ética

Meu padrasto ganhava muito mal e não conseguia pagar o meu material escolar. Naquele tempo, o governo não dava material, apenas oferecia a escola pública, mais nada. Com jeitinho, consegui um trabalho, apesar de ter apenas 14 anos. "Encarregado do Mimeógrafo" da escola. Uma responsabilidade e tanto.

Tinha que datilografar
as matrizes e rodar todas as provas do colégio. Mas o que eu ganhava dava para pagar o meu material e...boa! Como o trabalho era de estrita confiança e sigiloso ao máximo, o equipamento ficava dentro da sala dos professores e só eu, dentre os alunos, tinha acesso a ele. Um dia, estava eu rodando uma prova de uma classe, quando uma professora, que corrigia provas na mesa ao lado, começou a rir da resposta de um aluno e mostrou a outra professora. Na minha curiosidade mórbida e aproveitando a intimidade do momento, arrisquei a perguntar o que o aluno tinha dito de tão gozado. A professora, gentilmente, dobrou para trás o cabeçalho da prova e me mostrou. De fato, era uma resposta extremamente espirituosa. Arrisquei ir além e perguntei quem era o aluno e ela logo respondeu: "-Não posso mostrar." "-Por quê?" perguntei eu. E ela, do alto de sua autoridade de professora, esclareceu: "-Não posso contar por uma questão de Ética." é claro que eu não sabia o que é isso. E a explicação da professora não foi nada convincente. Fingi estar satisfeito e encerrou-se aí o episódio.
A minha cidadezinha tinha pouco mais de 30 mil habitantes e um comércio bastante fraco. Mas tinha uma livraria excepcionalmente grande para as medidas locais. Eu tinha umas economias e fui até a livraria. Comprei um livro gigantesco, com quase mil paginas, chamado "Ética" de um tal de Aristóteles. Levei para casa e, com o dicionário do lado e uma enorme dificuldade, porque a cada quatro palavras uma eu não conhecia o significado, comecei a ler. Foi terrível. Chato, estremamente chato. Li umas cinquenta e poucas páginas e continuei boiando com essa palavra Ética.
Voltei à livraria e perguntei se não havia nada mais recente sobre Ética, porque o grego estava me enlouquecendo, esse tal de Aristóteles. Encontrei então um título "Ética" escrito por um filósofo contemporâne
o chamado Adolfo Sanchez Vazquez, um mexicano muito arretado da gota serena. Com o que me restava de grana, comprei esse livro também e voltei para casa, me divertir com o desconhecido.
Afinal, conseguira conceituar a tal da Ética. Satisfeito, encerrei o assunto e passei a me considerar um conhecedor da Ética. Bonito, mas nada prático, como vamos logo perceber. Esqueci o assunto e toquei a bola pra frente, cuidando (ou não) da minha vidinha de moleque travesso.
Ao completar 18 anos, meu perfil era outro. Precisava porque precisava trabalhar e o máximo que tinha conseguido, era trabalhar pessimamente remunerado na emissora de rádio local, isso depois de um longo período trabalhando de graça. Desde os 16 anos escrevia para jornais locais, todos semanários e sem remuneração. Precisava virar gente, diziam meus pais. trabalhar num emprego decente. e eis que chega a grande oportunidade. Um concurso para oficial de justiça. Me inscrevi esperançoso.
Diziam que havia um psicológico embutido na prova. Eram 2 vagas e 400 candidatos. A redação valia quase metade da pontuação total e ofereceram 3 temas: A Amizade, O Brasil e a Revolução de 1964 e O Homem e o Mundo Moderno. Avaliei que, se houvesse realmente um exame psicológico embutido na prosa, a amizade nem pensar e tema político também não - escolhi o último tema. Acabara de ler Alvin Toffler, "O Choque do Futuro" e "A terceira Onda" e tinha lido "A Aldeia Global" de Marshall McLughan, além de "A Técnica eo Desafio do Século" de Jacques Ellul. Estava afiadíssimo para a redação, como podem notar.
Na prova, uma das perguntas era se determinado comportamento do oficial de justiça poderia ir contra a Ética. Eu escrevi no lugar da resposta que a pergunta havia sido formulada "errôneamente".
Meses depois da prova, o juiz de direto me chamou em seu gabinete. Havia um comentário na cidade de que eu teria decorado o texto da redação, uma vez que naquela cidadezinha, um jovem de 18 anos não poderia, simplesmente, saber tudo aquilo. E para piorar, o cara que tirou o primeiro lugar na prova fizera uma redação de 12 linhas sobre a amizade. Ele me disse: "-Você pretendeu anular uma questão da prova e foi uma grande bobagem. Se vc não tivesse tentado isso, teria passsado, mas pegou terceiro lugar e, como sabe, são só duas vagas. Mas, eu te chamei aqui só para matar uma curiosidade. Por que vc entendeu que a pergunta estava formulada de maneira errada?
Bem, disse eu - qual o conceito de Ética do senhor? Ele respondeu, enérgi
co: Quem pergunta aqui sou eu. Qual é o SEU conceito de Ética? Eu respondi: Bem, a Ética, no meu conceito, é uma doutrina filosófica, que tem por objeto a moral no tempo e no espaço. Como doutrina filosófica, ela só pode ser especulativa, jamais normativa, a não ser quanto ao método de estudo. O que é normativo com relação ao comportamento é a Moral. A Ética aponta, investiga, analisa, compara o comportamento humano em várias regiões do globo e em várias épocas, para poder entender melhor o que é certo e errado, pelo menos aqui, pelo menos agora.
O juiz então, perguntou de onde eu tirara aquilo e dei a bibliografia, ressaltando que não consguir
a adentrar a ética de aristóteles por ser muito chata.
Então o juiz explicou: "- Olha, essa prova foi elaborada por mim, por um professor de direito da faculdade local e por um juiz de direito de outra comarca. Se você insistir
nessa sua tese, você tem chance de ganhar, com prejuízo moral para os três. E, se você ganhar, não será, obvimente, bem vindo aqui.

(pano rápido)

A Bacia de Jabuticaba



















Contei meu tempo e descobri que terei menos anos para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Se for verdade que o tempo médio de vida do brasileiro é de setenta anos, constato com tranqüilidade, que já vivi noventa por cento daquela etapa-limite.

Deste modo, sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia cheia de jabuticabas. As primeiras ele as comeu de forma displicente. Quando se deu pela conta que faltavam poucas, se pôs a saboreá-las mais, roendo até o caroço.

Nesta fase já não tenho paciência para lidar com mediocridades. Desde que me aposentei, há mais de quinze anos, procuro fazer apenas o que gosto; e quando quero. Detesto estar naquelas reuniões onde desfilam egos inchados, beatos incoerentes, parvos gabolas ou invejosos.

Meu tempo para planos megalomaníacos passou. Alguns projetos que propus foram rejeitados por que iriam exigir sacrifícios. Nego-me a participar de conferências ou encontros que estabeleçam resolver a miséria do mundo, nem aceito convites para eventos de fim-de-semana para consertar o mundo e abalar o século.

Causa-me náuseas o conteúdo de certas reuniões, freqüentes e intermináveis, para discutir regulamentos, sexo de anjos e estatutos. Falta-me tempo para administrar melindres de adultos imaturos.

Não vou mais àquelas reuniões em que o “superior geral” traz a pauta pronta e não anota nada, evidenciando que não deseja mudanças. Não perco mais tempo em conclaves molestos, pura “disputa de beleza”, cheios de confrontações, onde querem “tirar fatos a limpo” e acabam em “tudo combinado e nada resolvido”. Detesto “dar força” a desafetos que se desentenderam por causa do majestoso cargo de secretário-geral da banda, ou coisa parecida.

Ocorre muito aquilo que Mario de Andrade denunciou: “As pessoas não debatem conteúdos, apenas rótulos”. Meu tempo se tornou escasso para debater rótulos; ando em busca de essências.

Se for para jogar tempo fora, prefiro passá-lo em casa, conversando, tomando chimarrão, comendo “cebolitos” e até vendo televisão com minha mulher, ou fazendo um churrasquinho esperto com os filhos, ou amigos do peito, em cuja companhia o tempo nunca é perdido.

Já sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana, que saiba rir de seus tropeços, sem se deslumbrar com os triunfos, gente que não se considera eleita ou santa antes da hora. Pessoa que não fuja de sua mortalidade, que mesmo possuindo alguma coisa não se esqueça dos pobres e dos excluídos. Gente, enfim, que procura fazer tudo o que Deus quer.

Viver ao lado de pessoas e valores verdadeiros, desfrutar de um amor absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo. Esse essencial é que faz a vida valer a pena.



O autor é Filósofo e escritor










Antônio Mesquita Galvão
Publicado no Recanto das Letras em 28/05/2007
Código do texto: T504626