quarta-feira, 9 de março de 2011

Nhapecan

Em São José do Rio Preto, no começo da década de 90, fui morar do lado do aeroporto. E presenciava o trabalho de um bando de maníacos por voar, arrastando prá lá e pra cá os seus equipamentos sem motor. Caí na besteira de entrar no meio deles. Fui inoculado pelo vírus e passei a adorar voar de planador. Controlar o bicho que tem planeio maior do que o reboque e mante-lo abaixo, para que não provoque o pilonamento da aeronave de tração é algo fantástico. Depois que chega aos 600m, desliga-se a corda e fica-se apenas ouvindo o sibilar do vento, com aquela preocupação em encontrar logo aquela super-série de térmicas que poderá te levar a 2, 3 mil metros. Sabíamos que poderia curvar para subir, assim que uma térmica apertasse a nossa bunda no assento da máquina. Simples demais. Meu record foi 5 horas no ar e meu mais pífio desempenho foi 15 minutos para baixar de 600 para o nível da pista, num dia meio esquisito e sem térmicas. O equipamento era o Nhapecan biplace (2 lugares), com 400 kg de peso e um angulo de planeio de 30:1 - ou seja, a cada metro que desce, avança 30. Era uma delícia depois de ficar sob nuvens - jamais se deve entrar nelas com planador - fazer a volta de pista, pegar a perna do vento, aproximar da cabeceira com o freio aerodinâmico aberto, glissar um bocadito, nivelar o bicho a 1 metro do chão, fechar o freio aerodinâmico, botar o manche delicadamente para a frente e fazer o bicho enfrentar o floating e tocar com a roda no asfalto. Naquela época em Rio Preto, por ter que desocupar logo a pista em função dos aviões comerciais cujos pilotos infernizavam a vida das torres por causa dos planadores, todo mundo emagrecia um bocado com o esforço de empurrar, já que nem sempre tinha um veículo para rebocar na pista os Nhapecan.




















Nunca mais voei. Soube que em Jundiaí tem um pessoal que pratica volovelismo. Mas ando meio sem disposição para ir até lá.

Costumo ironizar meus problemas, mas esta profissional é insuperável:

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Vida Louca

Meu pai foi na mosca, quando me visitou. Prevendo minha recusa em vir a Campinas ajudá-lo num trabalho de dois meses que tinha que realizar, na mesa do almoço tirou do bolso um pacote de dinheiro que eu nem mais me lembrava quando tinha visto um igual. Duro e endividado, apesar de trabalhar na Rádio Clube de Pouso Alegre no sul de Minas e ser dono do Serviço de Som da Rodoviária, não tive alternativa. Na época, (1978) a cidade tinha pouco mais de 60 mil habitantes e eu, muitos problemas. Claro que aceitei. Pedi para um amigo "gerenciar" o som e consegui uma licença não remunerada na rádio. Em Campinas, fui morar numa pensão no Guanabara. Era de um casal, Dona Paula e Seu Romeu. Num dos primeiros dias, fiquei um tempo sentado na sala vendo TV. No outro sofá, um homem de seus 30 anos, cabelo cortado à militar, prestava uma atenção danada na televisão. Num intervalo, ele olhou para mim e disse, com ar sério: "- Os homens estão chegando. Cuidado!" Sem entender, perguntei quem estava chegando e ele, fazendo cara de confidência, meio que assoprou: "-Os alienígenas! Os homens do espaço!" Percebi algo estranho, é claro, mas me calei. Dona Paula, que presenciou a conversa, logo que ele saiu da sala me chamou à copa e contou a incrível história desse homem. Era filho dela e se chamava Helio, ou melhor: Helinho. Funcionário da FEPASA, lotado na Capital, até alguns anos atrás. Tinha um bom cargo e acabara de ganhar uma promoção como chefe de um setor da Contabilidade da Empresa. Era bastante inteligente e competente, disse a mãe. Logo em seguida à promoção, ficou noivo. Muito trabalhador, fazia longos serões. Num sábado, avisou a noiva que não iria namorar, porque tinha que adiantar um trabalho até altas horas. Mas por volta de 9 da noite conseguiu terminar e resolveu passar na casa dela, apenas para dar um beijo e ir dormir. Helinho era de uma geração que nutria um grande respeito a tudo. Ao bater, ela não estava. "-Foi ao cinema" explicaram os familiares. Ele deu-se por contente e se despediu. Entretanto, o amor era mais forte e resolveu esperar na rua a noiva chegar do cinema, para lhe dar o tal beijo e ir embora de vez, descansar. Naquele tempo, a iluminação era fraca e havia muitas árvores frondosas na rua. Helinho ficou, discretamente, sob uma dessas árvores. Não demorou muito e a noiva chegou. Estava num táxi. Quando pensou em correr para abrir a porta, eis que percebeu que a moça estava beijando sofregamente o taxista. Hirto de surpresa, ficou sem reação, vendo o beijo evoluir para um coito apaixonado ali mesmo, dentro do carro. Antes do fato consumado, Helinho saiu discretamente e foi embora. No domingo, foi à casa da noiva, entregou a aliança, devolveu os presentes mais caros e encerrou o relacionamento ali mesmo.
Meses depois, em Campinas, num dia de Derbi (Ponte Preta x Guarani) em pleno estádio, Helinho começa a rasgar a própria roupa e a gritar o nome da ex-noiva. Estava rompido o contato do rapaz com a realidade, contato esse nunca mais refeito.

Anos depois de ir embora de Campinas, numa visita aos meus filhos, encontrei seu Romeu no Mercado da Barão de Jaguara. Perguntei de D. Paula. Ia bem. E perguntei de Helinho. Ao que ele respondeu: "- Descansou. Faz alguns meses que Helinho morreu." Apresentei meus sentimentos, me despedi do seu Romeu e fui embora, pensando: "Não, Helinho não morreu agora. Ele morreu naquela noite em São Paulo, naquela rua diante de um táxi." Vida louca!