domingo, 27 de fevereiro de 2011

La Traviata

A cidade se esparrama por sobre a serra, modorrenta, com um sol a pino a determinar o canto sincopado das galinhas poedeiras nos arborizados quintais. Na varanda, dona Amélia cuida dos detalhes de um complicado vestido, um porre para passar a ferro. Entretanto, na estante daquele galpão que é garagem e área de serviço, um rabo-quente, aqueles velhos mas honestos radinhos AMAdicionar imagem solta a quem quiser ouvir, Brindisi.O tenor e as sopranos enchem a tarde com suas notas melodiosas. La –lá, La-la-lá, lala-lá, lari lá larilá, larilá, lalá...A minha infância querida, foi marcada e bem marcada por Brindisi. Graças a Verdi e a Deus.

Apologia da Ignorância

Essas estruturas todas, colossais, celestiais, abissais, indevassáveis. Quando penso estar à margem, eis que me vejo no meio. Ao imaginar-me inserido, sou a exclusão. Me surpreendo raso, mas as pessoas me enxergam profundo. Mas quando me sinto largo, eis que me bate à porta a mais singela estreiteza. A oferta de pérolas precisa ser repensada, isso é ancestral. E toda certeza deve ser relativa. O sol nascerá hoje também, mas só para os vivos. Os mortos pouco se importarão com o sol. E há mortos e mortos. Vivos e vivos. E há vivos mortos e há mortos vivos. Com nenhum deles o sol se importa. Ele apenas nasce.
Quantos mistérios existem no sorriso da criança, no miado do gato, no por do sol, no barulho Da cachoeira, na trilha da formiga, no vôo do beija-flor, no gesto de carinho, no sorriso do olhar, na trilha da floresta, na rua deserta, na janela fechada, nas roupas do varal, no silêncio da garota, na pelada dos adolescentes na bucólica tarde da pracinha, nas minhas saudades, no futuro incerto, na esperança, nas minhas certezas e muito mais nas minhas dúvidas?
Houve uma época em minha vida, que eu queria saber de tudo. Tudo mesmo. O passar dos anos foi me ensinado, através de goles pequenos numa bebida amarga, que, por vezes – creio que a maioria delas – é bom não saber. Não há ignorante que sofra até que perca a inocência pura e galgue o honorável patamar da consciência. Talvez a ignorância em sua mais atávica manifestação, seja a forma mais pura e sublime de predisposição à felicidade. É certo que muitas vezes, é melhor nem saber das coisas, para poder melhor curtir o pouco que se sabe, com leveza e fidalguia.

Considerações sobre corpo e alma


Ela não dizia palavras, apenas. Ela se esfaqueava com elas. O sangue que corria era incolor e saia dos olhos. E o coração, já era de tempos um grande depósito de lágrimas. A despedida precisa de um céu gris, de um sol pálido, de um bocado de melancolia. Mas nada disso é capaz de separar junto com os corpos, as almas. A estrada, por longa que seja, é sempre menor do que a certeza do que ficou.


ENGENHARIA SOCIAL

-Pronto!
- Alô, é o senhor pedro?
- Sim, pois não?
- Senhor Pedro, bom dia, eu sou a Elisângela do Banco Babalú e gostaria de falar com o senhor a respeito de uma promoção onde o sr. indica pessoas para oferecer cartão de crédito adicional grátis por um ano inteiro!
- Querida, eu não me interesso pelo assunto.
- Mas o senhor não quer? O sr. não tem filho?
- Tenho 3.
- Todos maiores?
- Não, tem uma menor, a minha caçula.
- Ah, aqui só consta que o sr. tem um cartão adicional para a Janaína, confere?
- Sim.
- Ela é sua filha, não é mesmo?
- Não.
- Não, senhor pedro?
- Não, ela é minha amiga. Uma grande amiga.
- Não é sua filha, então?
- Não.
- senhor Pedro, que idade tem seus filhos?
- Bem, o Breno tem 24, o Caíque 22 e a Eridane 17.
- Olha, nós podemos oferecer um cartão adicional para cada um de seus filhos gratuitamente por um ano, o sr. concorda?
- Não.
- Não, seu Pedro? Mas consta aqui que o seu limite do cartão visa é de mil reais, confere?
- Mil? De onde vc tirou isso?
- Consta em nossos cadastros, senhor Pedro.
- Bem, preciso falar com o meu gerente, porque até onde eu sei o meu limite é cinco vezes e meia maior que isso em cada cartão, master e visa, no banco Babalú.
- Então, o sr. não quer mesmo oferecer um cartão adicional gratuito a cada um dos seus filhos?
- Não, querida. Já tive uma experiência parcial e quase fui à falência.
- Mas o sr. pode reduzir o limite de cada cartão a um mínimo de cem reais, senhor Pedro.
- É que vc não conhece a lábia dos meus filhos. Logo o limite estará em mil reais, deixa pra lá.
- Mas a sua renda lhe permite conceder três cartões adicionais grátis por um ano para cada um dos seus filhos no valor de mil reais, senhor Pedro?
- Claro que não, meu amor. Sou um proletário com pretensões a classe média num futuro distante.
- Então o sr. não quer mesmo oferecer os cartões grátis aos seus filhos, senhor pedro?
- Não, definitivamente não!
- Então o sr pode aguardar um pouco para que eu possa estar transferindo a ligação, senhor Pedro?(...)
- Senhor Pedro, bom dia, eu sou a Patrícia, do setor de atendimento do Banco Babalu, para onde o senhor deseja que eu mande os cartões, é para o endereço da consolação ou para o endereço da república?
- Meu bem, para começo de conversa, eu não tenho endereço algum na república e para finalizar eu não quero oferecer cartão de crédito adicional gratuito por um ano para ninguém.
- Nao,senhor Pedro? é de graça por um ano!
- É, eu sei. De graça por um ano e depois eu pago o olho da cara, né?
- Bem, já que o senhor, definitivamente, não deseja oferecer cartões de crédito adicionais a ninguém, nem aos seus filhos, eu sugiro que o senhor faça um seguro de seu carro ou de sua casa por um valor bem em conta, deseja?
- Meu amor, eu não tenho carro e moro em casa alugada, que diabo!
- O Banco Babalu agradece a sua atenção e lhe desjea um excelente dia, senhor Pedro. Meu nome é Patrícia e agradeço por sua atenção.
(é óbvio que o banco já tinha todas as minhas informações. As atendentes estavam apenas, sutilmente, checando cada uma.)

Lembranças


Como diria aquele personagem do saudoso Chico Anysio (A Globo matou ele em vida) "-tudo é muito relatiiiiivo." Me lembro que antigamente, as pessoas morriam de coisas pelas quais hoje já não se morre mais. Me lembro que a maioria (maioria sim) das crianças e até dos adolescentes, andava descalça, sapato era um troço prá lá de caro. Me lembro que só tinha asfalto ou rua pavimentada com paralelepípedos nos centros das cidades e saindo deles, era um buraco só, tudo na terra nua. Me lembro também que roupa era um troço muito caro. Tão caro, que o uniforme da escola era usado por todos da família até ficar todo rustido. Me lembro que a gente se reunia numa pequena multidão de 30 ou 40 pessoas de todo o bairro para assisitir televisão na casa do dono da mercearia, o único que teve cacife para comprar uma. Eram aquelas TVs Colorado, que de colorido só tinham o nome, uma vez que a imagem era em preto e branco mesmo. Me lembro de quando o fusca chegou. Achavam que ia ser o maior fiasco, por ser muito pequeno, apertado e desconfortável. Me lembro que as pessoas eram muito mais magras do que hoje. Comiam menos, talvez. E faziam mais esforço, não tinha nada automatizado. Me lembro que as casas tinham grandes quintais e que em muitas, o banheiro eram as belas e vistosas bananeiras, talvez adubadas à força com os dejetos das pessoas. Me lembro de muito mais. Me lembro que os carros quebravam muito, principalmente os sem partida, com manivela, tipo forde-bigode. Me lembro que a maior parte das cidades era iluminada a lampião, especialmente na periferia. Era um cheiro de querosene lascado. Me lembro que as casas tinham fogão a lenha e a cidade ficava com o céu cinza na hora das refeições, porque todo mundo aumentava o fogo para preparar comida. Me lembro que passar roupa com ferro a brasa era um tormento, tinha que balançar o ferro no braço para avivar as brasa dentro dele. Me lembro que rede de esgoto era um privilégio de alguns. Nas vilas e bairros mais distantes das cidades brasileiras, ele corria a céu aberto, era um forte cheiro de merda com urina no ar.