sábado, 12 de março de 2011

O dia em que a cidade parou


Trabalhar numa grande rede de televisão é um privilégio de poucos e, de maneira geral, motivo de honra e orgulho, dado que as pessoas comuns costumam admirar e respeitar tais profissionais.

No subconsciente de todo estudante de jornalismo, mora o sonho de, um dia, trabalhar numa grande rede. E se, depois de formado um dia isso acontece, é motivo de comemoração com familiares, amigos, etc.

A coisa fica mais intensa, quando essa grande rede resolve abrir uma emissora regional. Aí, a coisa chega à beira do delírio.

Toda essa pompa e circunstância mexe com a personalidade de alguns, que passam a não mais ter um comportamento normal, não cumprimentam mais qualquer um, só conversam com quem acham importante no trabalho e por aí vai.

Essa chegada aos 'píncaros da glória' e esses efeitos colaterais no comportamento da tropa, acabam por gerar situações cuja comicidade supera a tragédia também presente.

Esse espírito acende o estopim de um impasse, quando chega à chefia de reportagem, à produção e, principalmente, ao setor de rádio-escuta, que é a ponte entre as fontes oficiais e a emissora.

Quando ocorre um fato relevante que envolva a necessidade da presença do Corpo de Bombeiros, a central dos homens do fogo toma todas as providências regulamentares e, em seguida, alguém liga para a imprensa, informando o ocorrido, quase sempre em tempo de uma cobertura imediata de um incêndio, por exemplo.
Na verdade, o procedimento correto é o pessoal de rádio escuta ligar o tempo todo, fazendo uma varredura nas fontes, para tentar 'pescar' uma notícia. No intervalo dessa varredura, as fontes costumam também ligar.

Ninguém me contou: presenciei esses acontecimentos, eu estava lá e assisti a tudo.

Vou pinçar um só exemplo da estupidez que acomete, de vez em quando, certas redações de televisões regionais:

Num plantão, eu dava bobeira na redação - estava de folga mas fui até la - o rádio escuta conversava com a mulher ao telefone. O chefe de reportagem simplesmente namorava uma repórter que estava em casa de folga, também por telefone.

Claro que sobrou para mim antender uma ligação. Era do corpo de bombeiros: um grave acontecimento na região. Não consegui interromper nenhum dos dois plantonistas.

Senti o bombeiro bastante desconfortável em ter que esperar. Mas esperou.


Quando o rapaz da rádio escuta afinal atendeu o bombeiro, perguntou onde era o ocorrido e anotou, dizendo logo em seguida: "-A gente já sabia!" claro que era mentira, sabia nada. E desligou o telefone com força, sem agradecer.

Esse fato me deixou preocupado, mas não a direção de jornalismo, encastelada no seu "aquário" apartado da redação e ainda assim nunca aos finais de semana ou feriados.

Um belo dia, descobriu-se que o jornalismo sofrera uma gigantesca "barriga". As rádios e os jornais foram avisados de um fato, mas a TV não. Acendeu-se um alerta geral na redação.

Apesar da orelha em pé, os fatos foram se sucedendo, com a TV alheia a tudo. Um amigo de um jornal passou a avisar quando havia um fato relevante, mas a polícia civil, a polícia militar, os bombeiros e uma boa parte da cidade que provia como fonte a TV com informações, calou-se.

Pior: o problema acontecendo, todos de rádio e jornal avisando a TV que estava acontecendo e a escuta, ao checar recebia sempre a mesma resposta: "Não há nenhum fato relevante, está tudo normal."

É óbvio que, cansadas de serem destratadas pelo pessoal do jornalismo, as fontes se conversaram e resolveram colocar a emissora fora do rol de redações para as quais todos ligavam quando acontecia alguma coisa.

Algum velho jornalista já disse e é verdade: jornalismo sem fonte, não é jornalismo.

Resultado: o diretor de jornalismo precisou, com o diretor geral da emissora a tiracolo, visitar todas as instituições da cidade que serviam de fonte à redação, pedir desculpas pelo mau tratamento que motivou esse lockout geral e pedir encarecidamente que o relacionamento fosse reatado.

Por incrível que pareça, isso aconteceu numa emissora regional de uma cidade média do interior de São Paulo e anos mais tarde, em outra, ocasiões e locais diferentes, mas motivos idênticos: a arrogância e desrespeito com que as supostas 'vestais' do jornalismo tratavam as suas fontes, motivando uma conspiração para provocar a volta da humildade à redação da TV.

Voltou.