segunda-feira, 14 de setembro de 2009

PEER GYNT (Wilhelm Reich em "A Função do Orgasmo")

(Estou reproduzindo parte de um capítulo do livro de Reich, intitulado Peer Gynt, porque a sua leitura me fez compreender o lado escuro da humanidade que existe dentro de cada um de nós. Somos todos Peer Gynts, tentando nos matar uns aos outros, para que sejamos práticos e objetivos e não soframos com o nosso atávico medo de sermos mais infelizes do que já somos. )
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O impacto da psicanálise foi enorme e de grandes consequências.
Foi um soco na face do pensamento convencional.
Você pensa que determina livremente suas próprias ações?
Longe disso: sua ação consciente é apenas uma gota na superfície de um mar de processos inconscientes, do qual você nada pode saber - e sobre o qual, na verdade, tem medo de saber algo.
Você se sente orgulhoso da "individualidade de sua personalidade" e da "abertura de sua mente"? Qual o quê!
Na verdade, você é apenas o brinquedo de seus instintos, que fazem com você tudo o que bem entendem.
Isso, não há dúvida, ofende intensamente sua vaidade!
E você se sentiu depois desiludido quando lhe disseram que era descendente dos macacos e que a Terra na qual se arrasta não é o centro do Universo, tanto quanto se sentira feliz antes em pensar o contrário.
Você ainda crê que a Terra, um entre milhões de planetas, é o único que permite a vida.
Em suma, você é regulado por processos que não pode controlar, que não conhece, que teme e que interpreta errôneamente.

Há uma realidade psíquica que se estende muito além de sua mente consciente.
Seu inconsciente é como a "coisa em si", de Kant. Em si mesmo não pode ser agarrado; revela-se a você apenas através de suas manifestações.

O Peer Gynt de Ibsen sente isso:

"Para trás, ou para a frente, é igualmente longe. Fora ou dentro, o caminho é igualmente estreito. É ali! - e ali! - e tudo ao meu redor! Penso que saí, e estou de volta, bem no meio. Qual é o seu nome? Deixe-me vê-lo! Diga o que você é!"

É o "grande Boyg". Li muitas vezes o Peer Gynt.

Li muitas interpretações, também. Somente a de Brandes, o grande sábio nórdico, tocou meus próprios sentimentos em relação ao drama de Ibsen.

A rejeição emocional da teoria do inconsciente de Freud não pode ser totalmente explicada sobre a base do medo tradicional às idéias novas e grandes.
O homem tem de existir, material e psiquicamente; tem de existir em uma sociedade que segue um modelo prescrito e tem de defender-se.
A vida diária o exige.
Uma divergência do que é conhecido, do que é familiar, um desvio do caminho muitas vezes trilhado, pode significar a confusão total, a ruína.
O medo do homem do que é incerto, do insondável, do cósmico justifica-se, ou ao menos se compreende.
Aquele que se afasta do caminho comum se torna facilmente um Peer Gynt, um visionário, um doente mental.

Parecia que Peer Gynt queria revelar um profundo segredo, não sendo, entretanto, muito capaz de fazê-lo.

É a história de um jovem que, embora insuficientemente aparelhado, se liberou das fileiras cerradas da turba humana.
Não é compreendido.
As pessoas riem dele quando está fraco; tentam destruí-lo quando está forte.
Se não consegue compreender a infinitude que atinge seus pensamentos e ações, é condenado a desencadear sua própria ruína.
Tudo se agitou e rodopiou em mim, quando li e entendi Peer Gynt e quando encontrei e compreendi Freud.

Eu era ostensivamente semelhante a Peer Gynt.

Senti que seu destino era a consequência mais provável, quando alguém se aventurava a libertar-se das fileiras cerradas de uma ciência autorizada e do pensamento tradicional.

Se a teoria do inconsciente de Freud era correta - e eu não tinha dúvidas de que fosse - então a infinitude psíquica interior tinha sido entendida.

O homem se tornara uma pequena mancha no fluxo de suas próprias experiências.
Senti tudo isso de uma forma nebulosa - mas não "científicamente".
Encarada do ângulo da vida sem couraça, a teoria científica é um ponto de apoio no caos dos fenômenos vivos.
Serve, por isso, ao objetivo de uma proteção psíquica.
Não há muito perigo de que seja tragado por esse caos, quando se classificaram nitidamente, se catalogaram, se descreveram - e por isso se pensa haver compreendido - esses fenômenos.
Dessa maneira, é até mesmo possível dominar certa porção desse caos.
Isso me trazia um consolo muito pequeno.
Com vistas às infinitas possibilidades da vida, tem sido minha preocupação constante nos últimos vinte anos limitar o alcance de minhas investigações científicas.

No fundo de cada item pormenorizado de meu trabalho havia o sentimento de ser apenas um ponto infinitesimal no Universo.
Para quem voa a uma altitude de mil metros, quão miseravelmente parecem os carros que se arrastam lá embaixo!

(...) Foram estas observações e sugestões que me levaram a ler muitas vezes Peer Gynt.

Através de Peer Gynt, um grande poeta deu voz às suas percepções do mundo e da vida.
Em 1920, estudei o drama e tudo quanto fora escrito a respeito dele.
Vi a representação teatral no Burgtheater de Viena e mais tarde em Berlim.
Em 1936, vi uma interpretação da peça pelo Teatro Nacional de Oslo, com maurstad como Peer Gynt.
Foi ai que entendi o meu interesse pelo significado da peça.

Ibsen havia dramatizado a miséria do sujeito não convencional.

De início, Peer Gynt tem umas idéias fantásticas e se sente forte.
Está fora de sintonia com a vida cotidiana: é um sonhador, um ocioso.
Os outros vão diligentemente à escola ou ao trabalho e riem do sonhador.
Bem no fundo, eles todos são também Peer Gynts.
Peer Gynt sente o pulso da vida, que arremete impetuosamente.
A vida de todo dia é estreita e exige um método rígido.
De um lado, se encontra a imaginação de Peer Gynt; de outro, a Realpolitik.
Temendo o infinito, o homem prático se tranca em um pedacinho da terra e procura segurança para sua vida. É um problema simples a que ele, como cientista, dedica a sua vida inteira.
É um comércio modesto de que se ocupa como sapateiro.
Ele não deve pensar a respeito da vida: vai ao escritório, ao campo, à fábrica; visita os pacientes, vai à escola. Cumpre seu dever e tem a sua paz.
Matou há muito tempo o Peer Gynt que havia nele.
Pensar é muito cansativo e perigoso.
Os Peer Gynts são uma ameaça à sua paz de espírito.
Seria muito tentador parecer-se com eles.

(...) Per Gynt está explodindo de energia e de alegria sensual.
Os outros se identificam com os sentimentos do filhote de elefante da história de Kipling.
Fugiu da mãe, chegou ao rio e fez cócegas no crocodilo. Era tão curioso e cheio de vida!
O crocodilo agarrou-o pelo nariz - ainda muito curto nesse tempo em que os elefantes não tinham longas trombas. (segue em breve)