quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O Shampoo


Por vezes, agendas externas coincidentes, assumidas por meus colegas, esvaziam o escritório. E eu ocasionalmente, atendo a uma ou outra demanda.

Recebemos muitas visitas de pessoas com toda sorte de problema.

Mas teve um, dias atrás, que não sei o que mais fez comigo: se me desconcertou ou se me aliviou.

Ocorre que as pessoas, quanto mais grave é o problema, mais rodeios fazem para chegar ao ponto.

O rapaz entrou, identificou-se, alegou estar albergado num local público, me mostrou o crachá com foto e outros documentos, enquanto falava.

Logo no começo, ele perguntou se eu era católico, religioso. Respondi, é claro, afirmativamente, explicando que apesar de não ser católico, eu era cristão e acreditava em Deus. Ele respirou aliviado.

Então, foi desfiando o seu drama. "Estou fazendo um curso profissionalizante. Não me falta comida, apenas tenho dificuldade de me tansportar pela cidade, mas posso tomar banho, comer e dormir no albergue."

De fato, o rapaz, aparentando uns 28 ou 30 anos, era forte e corado, barba feita, cabelos penteados, roupa simples, mas impecável. Não aparentava passar por dificuldades.

"O curso é de pedreiro e assim que terminar, vou imediatamente começar a trabalhar numa empresa que tem parceria com a Prefeitura." explicou ele.

O rapaz prosseguiu.

"-Eu percebo que o senhor é uma pessoa boa e se quiser se negar em atender o meu pedido, não tem problema nenhum, eu vou compreender."

A minha curiosidade foi aumentando proporcionalmente aos indícios que o rapaz me passava de que não havia absolutamente nada de errado com ele. Entretanto, as aparências por vezes enganam. Eu esperava, ansiosamente pelo desfecho. Afinal, qual seria o problema dele? Teria uma doença maligna? Câncer? Seria um HIV soropositivo em fase final de vida? Teria um parente, uma mãe, um irmão, sei lá quem, muito doente no leito de morte e precisando de ajuda? O que seria?

Ele relutou muito em fazer o pedido. Olhava para os lados com medo de que alguém mais ouvisse a conversa. E finalmente falou a que veio.

Realmente, respirei aliviado. Não sei bem ao certo, mas creio que até fiquei meio alegrinho com o que ele me falou com muito temor de que eu ficasse, na verdade, muito bravo com ele.

Desci com ele até a farmácia na avenida e atendi com prazer ao pedido do rapaz. Afinal, ele estava sem nenhum dinheiro e queria apenas que eu lhe comprasse um vidro de shampoo.



4 comentários:

Paulo Laurindo disse...

Eita vida arretada! Estamos ficando tão insensíveis com a enxurrada de tragédias diárias que quando nos defrontamos com demanda tão prosaica como esta pensamos que se trata de ficção.

pedro zeballos disse...

Recentemente o nosso herói apareceu de novo. Está empregado e melhorou de vida. Mas continua albergado. É que não faz um mês que foi contratado, não recebeu o primeiro pagamento. Almoçamos juntos.

pedro zeballos disse...

Nosso herói prestou concurso e agora está trabalhando no Censo, veio ao meu trabalho de uniforme e crachá me fazer uma visita.

pedro zeballos disse...

Encontrei nosso herói na semana passada. Prestou concurso publico e, num universo de mais de 2 mil candidatos, pegou a 23a. classificação. Depois de assumir o cargo, deixará, finalmente, de ser um albergado. Gostei muito da notícia!